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  • Foto do escritorFlavia Vivacqua

RESILIÊNCIA CRIATIVA E MUDANÇAS SISTÊMICAS

Muito se fala da “corrida pela sustentabilidade” como se fosse a “corrida pelo ouro” do novo milênio e como se sustentabilidade fosse algo economicamente adquirível no mercado perto de casa ou ainda, como se fosse possível ter uma “melhor sustentabilidade” ao importar-exportar inovações tecnológicas, por exemplo.

Mas o que é sustentabilidade?

Como fica a cultura com as necessárias mudanças sociais, diante da cada vez mais inegável consciência ambiental?

O que a arte tem ou pode ter haver com esse contexto?


SUSTENTABILIDADE


Sustentabilidade não é um elemento único, uma coisa, um selo ou um status.


Sustentabilidade é o equilíbrio dinâmico entre a antroposfera e a biosfera. Para tanto, os hábitos humanos, as zonas de conforto, a ética, as praticas conscientes, as visões de futuro necessitam estar focadas na atenção constante sobre o foco da sustentabilidade, regendo nossas escolhas cotidianas conscientes da inter-independência dos seres vivos e meio ambiente, em diferentes escalas.


Socialmente chegamos ao ponto de tal desequilíbrio que conservamos o que não nos serve mais e tememos a mudança necessária... desejo e necessidade se afastaram tanto entre si, e de um senso comum de ética, que perdemos a noção do poder de nossas ações e sua irreversibilidade.


<<CONSERVAÇÃO E MUDANÇA – cada vez que num conjunto de elementos começa a se conservar certas relações, abre-se espaço para que tudo mude em torno das relações que se conservam.>>  8°Lei Sistêmica da Biologia Cultural (H.Maturana e Ximena)


ÉTICA a consciência da irreversibilidade das ações humanas


É justamente nas dinâmicas relacionais que a ética acontece, consciente da irreversibilidade das ações humanas. Reverbera fortemente a importância da ética nos processos criativos e tecnológicos, sem negar os avanços científicos e tecnológicos e suas importantes contribuições humanitárias sobre tudo para a medicina e a livre comunicação. O desafio está nas dinâmicas relacionais e nas escolhas coletivas de cada um para chegar ao sentimento comum de ética, que possibilita que o vivenciado e as práticas cotidianas estejam de acordo com o bem estar pessoal e dos outros seres vivos que coexistem. A ética traz consigo a consciência de que nenhuma das possíveis armadilhas dos distúrbios extremos do processo sócio-culturais - como a busca pela eternidade, sobretudo pelos avanços genéticos e conceitos de mutação e clonagem; a busca pelo espaço galáctico e a materialização de uma realidade-ficcional; a virtuosidade como alienação espetacular e vaidade; o uso fetichista da tecnologia por si, como forma de representação da realidade e manifestação da fantasia e da gana; também, praticas que gerem excesso e desperdício de matéria, energia e relações humanas - que estão se formando, sejam conservados.


O que estamos conservando?

O que desejamos e necessitamos conservar?


MEIO AMBIENTE E RESILIÊNCIA


Em ritmo de urgência, no cenário atual, já virando a espiral da primeira década do século XXI, eclodem os problemas sócio-ambientais com a necessidade de tomada de consciência de que: os recursos naturais são finitos [como o fornecimento de água potável]; há fragilidade produtiva [de alimento inclusive] em grande escala, hiper-dependente da energia e combustível fóssil, que tem no chamado pico do óleo[i] e nas inegáveis mudanças climáticas[ii]; o aceleramento dos processos a passos tão largos quanto os avanços tecnólogos e genéticos, delimitando fronteiras [de espaço, tempo e linguagens] para um importante e necessário redesenho sócio-cultural-ambiental.


Resiliência é um termo da física, aplicada a biologia para definir a capacidade de elasticidade ou ainda a capacidade de sobrevivência de determinado organismo ou sistema em meio a grande impacto. Esse termo também vem sendo utilizado para compreender a capacidade estruturadora das comunidades sociais que passam por situações criticas. Esse termo também é aplicável hoje em redes sociais e se diz que redes distribuídas ou descentralizadas são mais resilientes que as redes centralizadas, por exemplo, porque não desestabilizam tanto quando um laço forte ou um nodo com muitas conexões é rompido.


REDES COLABORATIVAS, processos coletivos e ações locais


Os múltiplos caminhos que nos permitem as redes colaborativas da sociedade, potencializadas pela tecnologia (principalmente a internet) e a comunicação tática, tornam mais recorrentemente visíveis uma série de manifestações, com estruturas e dinâmicas que apresentam padrões reconhecíveis também em outras organizações comunitárias do reino animal. Marca o surgimento de novas formas de organização social rumo a governança não-hierárquica, mobilizadas pela confiança, transparência e colaboração entre os integrantes, focados no conhecimento livre, na resignificação do trabalho, no estabelecimento de novos valores e ética, na busca por outras economias e sobre tudo, outros modos relacionais, uma verdadeira ecologia social de cultura colaborativa.


ARTE, ECOLOGIA CULTURAL e MUDANÇAS SISTÊMICAS


Ecologia aqui está compreendida como a organização sistêmica, suas dinâmicas e qualidades relacionais entre diferentes elementos. Socialmente falando, os padrões que geramos a partir de determinada ecologia é entendida aqui como cultura.


Mudanças sistêmicas são mudanças culturais profundas, que retiram a ilusão alienante - que desde a revolução industrial nos fizeram acreditar na infinitude dos recursos naturais e desejar como ideal um mundo insustentável - e nos lança nus a realidade desafiadora, que nós e as próximas gerações estamos por vivenciar mais intensamente. Não trata-se de culturalizar o medo, mas de uma nova cultura que tarda a emergir e que surge celebrando o simples, o essencial, o colaborativo e o compartilhar para viver no bem estar.


A arte, como coração vivo que bombeia e irriga a pele cultural da sociedade, já não basta como status social, entretenimento e mercado financeiro, ou ainda a mera manifestação da expressão artística técnica. A função social da arte encontra-se com o devir evolutivo[iii], ou seja, o desejo e a necessidade juntos: vivenciando a liberdade de sonhar presentes-futuros sustentáveis; a reflexão consciente sobre o presente, resgatando e conservando a sabedoria antiga; experimentando e abrindo novos caminhos e soluções criativas; propiciando e dinamizando processos relacionais colaborativos e comunitários; explicitando a beleza onde ela parece não existir. As praticas artísticas com qualidade de resiliência criativa é consciente e ativadora de seu contexto específico em varias dimensões, de ação transversal e na maioria das vezes colaborativa e multidisciplinar na sua realização.


Nesse contexto, não se trata de uma apologia a uma arte-ecológica ou de um retorno romântico à natureza intocada, ou ainda viver na roça como a única forma de vida interessante. Tão pouco, viver em uma bolha, dependente da mais surpreendente tecnologia ou ainda povoar outro planeta. Mas sim, reconhecer e compreender a produção crítica e criativa que dialoga com os princípios éticos e valores da ecologia profunda[iv] e o estabelecimento de relações de respeito e equilíbrio com o meio ambiente e os seres vivos, para colaborar com a existência da diversidade das espécies e culturas, nutrindo-se dela e vice-versa. Desta forma, sem cristalizar qualquer espécie de rótulo ou esperar formulas, preservam-se as sabedorias tradicionais e o pouco do que nos resta do meio ambiente selvagem, ao mesmo tempo em que são gerados novos paradigmas, organizações, vocabulários e mais práticas criativas em campos de atuação consciente.


Estamos em transição sócio-cultural, processo que não será igual e nem ao mesmo tempo em todos os lugares, desta forma, também não há formula possível para soluções ou compreensões sistêmicas de todas as transformações das quais estamos falando. Mas o que é possível perceber é que qualquer tentativa de conservar a lógica sistêmica como está é paliativo das mudanças que estarão por vir, de uma maneira ou de outra, no cotidiano do viver.


Diante desse macro contexto, porém, focando ações locais e comunitárias, de contexto específico, artistas, pesquisadores e pensadores da arte com prática sobre tudo vindas das intervenções urbanas e da esfera pública, performances e multimeios, passam a relacionar-se também com outras áreas do conhecimento como: geografia, biologia, política, questões sociais, economia e trabalho, entre outros.


No Brasil, onde vivo e escrevo, fazendo um breve recorte da produção artística dos últimos 10 anos, podemos citar nomes como Ana Paula Oliveira, Barbara Colin, Deddo Verde, EIA – Experiência Imersiva Ambiental, Floriana Breyer, George Sander, Grupo PORO, Jean Sartif, Luciana Costa, Orquestra Organismo, Rodrigo Braga e Rodrigo Bueno, que em suas produções artísticas e estéticas abordam questões ligadas ao meio ambiente, por exemplo.


DESIGN CULTURAL E AS PERGUNTAS DO AQUI E AGORA


Mas como o sistema da arte pode lidar com uma demanda externa, econômica e de políticas públicas, que priorizam as questões ambientais e a tornam tema central?

Quais os desafios que enfrentarão os gestores culturais?

Como os aparelhos culturais podem ser integrados nas novas dinâmicas?


Perguntas como estas geradas da expectativa de respostas prontas que podem ser reproduzidas ou o desejo por formulas, parecem ficar frágeis quando tomamos consciência da diversidade cultural, ambiental e situacional que existem, e podendo coexistir inclusive localmente.


Diante das mudanças econômicas e ambientais que estamos e iremos enfrentar, o que do sistema da arte queremos conservar?

Como se dão as relações de trabalho criativo e suas funções?

Pensando no meio ambiente, nas pessoas e no fazer criativo para sustentabilidade, quais as práticas artísticas, culturais, ou de governança desejamos?

Como podemos ser mais coerentes entre nosso fazer, nosso pensar e nosso devir evolutivo?

O que estamos conservando?

O que desejamos e necessitamos conservar?


O sistema da arte como parte fundante do sistema sócio-cultural, tornou-se um sistema extremista que necessita de personalidades para certo tipo de espetacularização populista, que gera números acima dos milhões em pessoas e dinheiro para que consigamos atribuir valor pelo impacto de circulação e acumulo, ou ainda, em seu extremo oposto, mas ainda do mesmo, personalidades raras, os únicos, os geniais, virtuosos, e para elites, e então atribuímos valor pela escassez e pelo status de ter (incluindo acesso ao conhecimento!).


Nos dois casos, fabricamos a mitificação do ser e seu fazer e a valorização do resultado e do produto final. Então, podemos expô-lo, preservá-lo, tê-lo como propriedade. Talvez, esteja aí, na visão fortalecida no século IXX do sistema da arte, que impera até hoje inclusive na arte contemporânea, e que explicita o abismo prático-vanguardista necessário de ser superado pelas novas organizações culturais do agora e do futuro.


A resiliência criativa está no âmbito do design cultural e sustentabilidade, que é a estratégia sistêmica e a ação necessária para a realização de um processo, projeto ou programa que seja justo às necessidades, especificidades, possibilidades e criatividade local. Trata-se de um novo conceito para compreender um trabalho transdisciplinar, integrador, participativo, com soluções criativas e compensação ambiental que envolva conceitos éticos, formatos inovadores, trabalho colaborativo, novas metodologias, estratégia de comunicação educativa, processos coletivos de criação e interação ambiental consciente.


Como um novo campo de pensar e agir trabalho=labor, os profissionais e coletivos de formação multidisciplinar, com visão sistêmica e capazes de coordenar e desenhar processos e realizações, sejam nas iniciativas independentes ou comunitárias, nas instituições culturais ou no desenvolvimento e na governança de políticas públicas, por exemplo, estão certamente determinados como uma tendência necessária e urgente no sistema cultura e artístico hoje, espelho também nas organizações e cooperações empresariais.


Mas, o que é mesmo que estamos conservando?

O que de fato desejamos e necessitamos conservar?


***

[i]Pico do petróleo é o ponto em que não mais podemos aumentar a quantidade de petróleo que extraímos, e globalmente a sua produção entra em um declínio irreversível. Isso acontece tipicamente quando se extraiu de um campo cerca de ½ de todo o petróleo que poderia ser extraído dele – não é quando o petróleo acaba. Outro ponto fundamental que nos chama a atenção nessa teoria são sobre as substancias e gases tóxicos como o CO2, que antes estavam estáveis por milhões de anos em camadas subterrâneas da Terra e pela extração e manipulação industrial são liberados na Biosfera, causando impactos irreversíveis. Essa informação foi recolhida da TransitionNetwork.org.

[ii] Mudanças climáticas ou Aquecimento Global são efeitos da aceleração do ciclo natural do planeta pela alta concentração de CO2 e outras substancias tóxicas como metano na atmosfera, potencializadas pelas ações extrativistas e poluentes dos processos industriais gerados pelos seres humanos. Essa informação foi recolhida da TransitionNetwork.org

[iii] Conceito cunhado por  Humberto Maturana e Francisco J. Varela no livro Arvore do Conhecimento.

[iv] Conceito proposto pelo filósofo e ecologista norueguês Arne Naess em 1973, como resposta a visão dominante e a pratica dominante sobre o uso dos recursos naturais. A dimensão social é belamente abordada por Joanna Macy.


*texto publicado na revista espanhola ARTECONTEXTO numero27, Dossiê: Arte e Ecologia.


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